USOS DO ERÓTICO: O ERÓTICO COMO PODER
Audre Lorde (nascida Audrey Geraldine Lorde, 18/02/1934 –17/11/1992) foi uma escritora caribenha-estadunidense, poeta e ativista. Descrevia a si mesma como Negra, Lésbica, Feminista, também “Guerreira” e “Mãe”. Escreveu diversos ensaios em questões como racismo, feminismo, sexualidade. Lorde focou a discussão em diferença não somente entre grupos de mulheres mas também em diferenças conflitivas no individual. "Eu sou definida como Outro em cada grupo que eu faço parte” ela declarou. "A que está fora, ambamente força e fraqueza’. Ela se descrevia ao mesmo tempo como um “continuo de mulheres’ e um “concerto de vozes’ dentro dela mesma.
O seu texto Usos do Erótico: O Erótico como Poder, traduzido abaixo, é uma leitura imprescindível para quem, assim como nós, acredita em uma intimidade livre e prazerosa.
Há muitos tipos de poder, usados e não usados, reconhecidos ou não. O erótico é um recurso dentro de cada uma de nós, que paira num plano profundamente feminino e espiritual, firmemente enraizado no poder de nossos sentimentos impronunciados ou não reconhecidos. Para se perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer aquelas várias fontes que há na cultura de oprimidos e podem suprir energia para mudança. Para mulheres, isso tem significado a supressão do erótico como fonte considerável de poder e informação dentro de nossas vidas.
Fomos ensinadas a suspeitar desse recurso, caluniado, insultado e desvalorizado pela sociedade ocidental. De um lado, o superficialmente erótico foi encorajado como símbolo da inferioridade feminina; de outro lado, as mulheres foram levadas a sofrer e se sentirem desprezíveis e suspeitas em virtude de sua existência.
É um pequeno passo daí à falsa crença de que só pela supressão do erótico de nossas vidas e consciências é que podemos ser verdadeiramente fortes. Mas tal força é ilusória, pois vem adornada no contexto dos modelos masculinos de poder.
Como mulheres, temos desconfiado desse poder que emana de nosso conhecimento mais profundo e irracional. Fomos alertadas contra ele por toda nossa vida pelo mundo masculino, que valoriza essa profundidade do sentir a ponto de manter as mulheres por perto para que o exercitemos para servir aos homens, mas que teme tanto essa mesma profundidade para examinar suas possibilidades dentro delas mesmas. Então as mulheres são mantidas numa posição distante/inferior para serem psicologicamente ordenhadas, mais ou menos da mesma forma com que as formigas mantêm colônias de pulgões para fornecer uma substância doadora-de-vida para seus mestres.
Mas o erótico oferece um manancial de força revigorante e provocativa à mulher que não teme sua revelação nem sucumbe à crença de que a sensação é bastante.
O erótico tem sido frequentemente difamado por homens e usado contra mulheres. Tem sido tornado na confusa, na trivial, na psicótica, na plastificada sensação. Por essa razão, temos frequentemente dado as costas à exploração e consideração do erótico como uma fonte de poder e informação, confundindo-o com seu oposto, o pornográfico. Mas pornografia é uma negação direta do poder do erótico, pois ela representa a supressão do verdadeiro sentir. Pornografia enfatiza sensação sem sentimento.
O erótico é uma medida entre os princípios do nosso senso de ser e o caos de nossos sentimentos mais fortes. É um senso interno de satisfação ao qual, uma vez que o tenhamos vivido, sabemos que podemos almejar. Pois tendo vivido a completude dessa profundidade de sentimento e reconhecendo seu poder, em honra e respeito próprio não podemos exigir menos de nós mesmas.
Nunca é fácil demandar o máximo de nós mesmas, de nossas vidas, de nosso trabalho. Encorajar a excelência é ir além da mediocridade encorajada de nossa sociedade, é encorajar a excelência. Mas ceder ao medo de sentir e trabalhar no limite é um luxo que só os despropositados podem bancar, e os despropositados são aqueles que não desejam guiar seus próprios destinos.
Essa demanda interna por excelência que aprendemos do erótico não pode ser mal entendida como exigir o impossível nem de nós mesmas nem das outras. Tal exigência incapacita todo mundo no processo. Porque o erótico não é uma questão só do que nós fazemos; é uma questão de quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir no fazer. Uma vez que sabemos a extensão à qual nós somos capazes de sentir esse senso de satisfação e plenitude, nós podemos então observar qual de nossos afãs de vida nos traz mais perto dessa completude.
O objetivo de cada coisa que fazemos é fazer nossas vidas e a vida de nossas crianças mais ricas e mais possíveis. Na celebração do erótico em todos os nossos envolvimentos, meu trabalho se torna uma decisão consciente – um leito muito esperado em que entro com gratidão e do qual levanto empoderada.
Obviamente, mulheres tão empoderadas são perigosas. Então somos ensinadas a separar a demanda erótica de quase todas as áreas mais vitais de nossas vidas além do sexo. E a falta de consideração às raízes e satisfações eróticas de nosso trabalho é sentida em nosso desafeto por tanto do que fazemos. Por exemplo, quantas vezes amamos de verdade nosso trabalho até em suas maiores dificuldades?
O principal horror de qualquer sistema que define o bom em termos de lucro ao invés de em termos de necessidade humana, ou que define a necessidade humana pela exclusão dos componentes psíquicos e emocionais dela – o principal horror de tal sistema é que rouba de nosso trabalho seu valor erótico, seu poder erótico e interesse e plenitude da vida. Tal sistema reduz trabalho a uma caricatura de necessidades, um dever pelo qual ganhamos pão ou esquecimento de nós mesmas e de quem amamos. Mas isso é o mesmo que cegar uma pintora e dizer a ela que melhore sua obra, e que goste do ato de pintar. Isso não é só perto do impossível, é também profundamente cruel.
Como mulheres, precisamos examinar as formas pelas quais nosso mundo possa ser verdadeiramente diferente. Estou falando aqui da necessidade de reavaliarmos a qualidade de todos os aspectos de nossas vidas e de nosso trabalho, e de como nos movimentamos até e através deles.
A palavra erótico mesma vem da palavra grega eros, a personificação de amor em todos seus aspectos – nascido do Caos, e personificando poder criativo e harmonia. Quando falo do erótico, então, falo dele como uma afirmação da força vital de mulheres; daquela energia criativa empoderada, cujo conhecimento e uso nós estamos agora retomando em nossa linguagem, nossa história, nosso dançar, nosso amar, nosso trabalho, nossas vidas.
Há tentativas frequentes de equiparar pornografia e erotismo, dois usos diametralmente opostos do sexual. Por causa dessas tentativas, se tornou modismo separar o espiritual (psíquico e emocional) do político, vê-los como contraditórios ou antitéticos. “Como assim, uma revolucionária poética, uma traficante de armas que medita?”. Da mesma forma temos tentado separar o espiritual e o erótico, assim reduzindo o espiritual a um mundo de afetos insípidos, um mundo do asceta que deseja sentir nada. Mas nada está mais longe da verdade. Pois a posição ascética é uma do mais grandioso medo, da mais grave imobilidade. A severa abstinência do asceta torna-se a obsessão dominadora. E não é uma de autodisciplina mas de auto abnegação.
A dicotomia entre espiritual e político é falsa também, resultante de uma atenção incompleta ao nosso conhecimento erótico. Pois a ponte que os conecta é formada pelo erótico – o sensual–, aquelas expressões físicas, emocionais e psíquicas do que é mais profundo e mais forte e mais rico dentro de cada uma de nós, sendo compartilhado: as paixões de amor, em seus mais fundos significados.
Além do superficial, a considerada frase “me faz sentir bem” reconhece a força do erótico em um conhecimento verdadeiro, pois o que ela significa é a primeira e mais poderosa luz guia a qualquer entendimento. E entendimento é uma ama que só pode esperar, ou explicitar, aquele conhecimento, nascido fundo. O erótico é a nutriz ou a babá de todo nosso conhecimento mais profundo.
O erótico para mim funciona de muitas maneiras, e a primeira é fornecendo o poder que vem de compartilhar profundamente qualquer busca com outra pessoa. A partilha do prazer, seja físico, emocional, psíquico ou intelectual forma entre as compartilhantes uma ponte que pode ser a base para entender muito do que não é compartilhado entre elas, e diminui o medo das suas diferenças.
Outra forma importante com que a conexão erótica funciona é a ampla e destemida ênfase de minha capacidade de gozar. Do jeito que meu corpo se expande à música e se abre em resposta, auscultando seus ritmos profundos, assim cada nível de onde eu sinto também se abre à experiência eroticamente satisfatória, seja dançando, construindo uma estante de livros, escrevendo um poema, examinando uma ideia.
Essa auto conexão compartilhada é uma medida do prazer que me sei capaz de sentir, um lembrete de minha capacidade de sentir. E esse conhecimento profundo e insubstituível da minha capacidade de prazer vem para demandar de toda minha vida que seja vivida dentro do conhecimento de que tal satisfação é possível, e não precisa ser chamada de casamento, nem deus, nem vida após a morte.
Essa é uma razão pela qual o erótico é tão temido, e tantas vezes relegado unicamente ao quarto, isso quando chega a ser reconhecido. Pois logo que começamos a sentir intensamente todos os aspectos de nossas vidas, começamos a esperar de nós mesmas e do que desejamos da vida que isso esteja de acordo com aquele prazer de que nos sabemos capazes. Nossa sabedoria erótica nos empodera, se torna uma lente pela qual escrutinamos todos os aspectos de nossa existência, nos forçando a examiná-los honestamente em termos de seus significados relativos em nossas vidas. E essa é uma grave responsabilidade, projetada desde dentro de cada uma de nós, de não se conformar com o conveniente, o falseado, o convencionalmente esperado, nem o meramente seguro.
Durante a Segunda Guerra Mundial, comprávamos potes de plástico selados de margarina branca, incolor, com uma minúscula, intensa cápsula de corante amarelo encimada como um topázio bem sob a pele clara do pote. Deixávamos a margarina de fora um tempo para amaciar, e então furávamos a pequena cápsula para jogá-la dentro do pote, soltando sua rica amarelice na macia massa pálida da margarina. Então pegando-a cuidadosamente entre os dedos, balançávamos suavemente pra frente e pra trás, várias vezes, até que a cor tivesse se espalhado por todo o pote de margarina, colorindo-a perfeitamente.
Eu acho o erótico tal cerne dentro de mim mesma. Quando liberado de seu invólucro intenso e constritor, ele flui através e colore minha vida com um tipo de energia que amplia e sensibiliza e fortalece toda minha experiência.
Fomos criadas pra temer o sim dentro de nós, nossas mais profundas vontades. Mas uma vez reconhecido, aqueles que não melhoram nosso futuro perdem seu poder e podem ser mudados. O medo de nossos desejos os mantém suspeita e indiscriminadamente poderosos, pois suprimir qualquer verdade é dar a ela uma força além da resistência. O medo de que não podemos crescer além de quaisquer distorções que possamos achar em nós mesmas nos mantém dóceis e leais e obedientes, externamente definidas, e nos leva a aceitar muitas facetas da opressão que passamos enquanto mulheres.
Quando nós vivemos fora de nós mesmas, e com isso digo em diretrizes externas unicamente ao invés de por nossa sabedoria e necessidades internas, quando vivemos longe daquelas guias eróticas de dentro de nós mesmas, então nossas vidas são limitadas pelas formas externas e alheias, e nós nos conformamos com as necessidades de uma estrutura que não é baseada em necessidade humana, quem dirá na individual. Mas quando começamos a viver desde dentro pra fora, em toque o poder do erótico dentro de nós mesmas, e permitindo esse poder de informar e iluminar nossas ações sobre o mundo a nosso redor, então nós começamos a ser responsáveis por nós mesmas no sentido mais profundo. Pois quando começamos a reconhecer nossos sentimentos mais profundos, nós começamos a desistir, por necessidade, de estar satisfeitas com sofrimento e autonegação, e com o entorpecimento que tantas vezes parece ser a única alternativa em nossa sociedade. Nossas ações contra a opressão se tornam integrais com ser, motivadas e empoderadas desde dentro.
Em toque com o erótico, eu me torno menos disposta a aceitar desempoderamento, ou esses outros estados fornecidos de ser que não são nativos para mim, tais como resignação, desespero, auto aniquilamento, depressão, autonegação.
E sim, há uma hierarquia. Existe diferença entre pintar uma cerca no quintal e escrever um poema, mas só uma de quantidade. E não há, para mim, diferença alguma entre escrever um bom poema e me mover à luz do sol contra o corpo de uma mulher que eu amo.
Isso me traz à última consideração sobre o erótico. Compartilhar o poder dos sentimentos umas das outras é diferente de usar os sentimentos de outra pessoa como usaríamos um lenço de papel. Quando desviamos o olhar de nossa experiência, erótica ou outra, nós usamos ao invés de compartilhar os sentimentos daquelas outras que participam na experiência conosco. E uso sem consentimento da usada é abuso.
Para serem utilizados, nossos sentimentos eróticos devem ser identificados. A necessidade de compartilhar sentir profundo é uma necessidade humana. Mas dentro da tradição europeia-americana, essa necessidade é satisfeita por certos proscritos eróticos de gozar-junto. Tais ocasiões são quase sempre caracterizadas por um simultâneo desviar o olhar, uma pretensão de chamá-las outra coisa, seja uma religião, um calhar, violência de multidão, ou mesmo brincar de médico. E esse mal chamar da necessidade e do ato dá vazão àquela distorção que resulta em pornografia e obscenidade – o abuso do sentir.
Quando desviamos o olhar da importância do erótico no desenvolvimento e sustentação de nosso poder, ou quando desviamos o olhar de nós mesmas ao satisfazer nossas necessidades eróticas em acordo com outras, nós usamos umas às outras como objetos de satisfação ao invés de compartilharmos nosso gozo no satisfazer, ao invés de fazer conexão com nossas similaridades e nossas diferenças. Nos recusarmos a ser conscientes do que estamos sentindo a qualquer momento, por mais confortável que possa parecer, é negar uma grande parte da experiência, e permitir que nós mesmas sejamos reduzidas ao pornográfico, o abusado, e o absurdo.
O erótico não pode ser sentido indiretamente. Como uma Negra lésbica feminista, tenho um particular sentir, conhecimento e compreensão por aquelas irmãs com quem eu dancei pesado, me diverti, ou até briguei. Essa participação profunda tem sido muitas vezes o precedente a ações conjuntas partilhadas não possíveis antes.
Mas essa carga erótica não é facilmente compartilhada por mulheres que continuam a operar sob uma tradição exclusivamente masculina europeia-americana. Eu sei que ela não estava disponível pra mim quando eu tentava adaptar minha consciência a esse modo de vida e sensação.
Somente agora, eu acho mais e mais mulheres-identificadas-com-mulheres bravas o bastante para arriscar compartilhar a carga elétrica do erótico sem ter que desviar os olhos, e sem distorcer a natureza enormemente poderosa e criativa dessa troca. Reconhecer o poder do erótico em nossas vidas pode nos dar a energia para alcançar mudança genuína dentro de nosso mundo, ao invés de meramente acomodação a uma mudança de personagens no mesmo teatro tedioso.
Pois não só nós tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas fazemos aquilo que é fêmeo e auto afirmativo em face a uma sociedade racista, patriarcal e ante erótica.
Traduzido por Tate Ann de Uses of the Erotic: The Erotic as Power, in: LORDE, Audre. Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. p. 53-59.
1 comentário
Que texto maravilhoso!! Muito grata!!!