Conheça a Lilit, sextech que cresce no ramo de produtos eróticos
Até 2027, o segmento de sex toys deve faturar R$ 108 bilhões. E a pandemia ajudou nesse processo com o aumento das buscas por produtos de bem-estar sexual.
Parece até mentira, mas, no início dos anos 1920, era possível encontrar vibradores em lojas de departamento ao lado de torradeiras e liquidificadores. A empresa que patenteou o primeiro dildo elétrico (que parecia um secador de cabelo) foi a americana Hamilton Beach, uma fabricante de eletrodomésticos comuns, que segue em atividade até hoje.
É que, na época, esses objetos nada tinham de eróticos. Eles eram usados para fins puramente clínicos, para curar o que a ciência da época chamava de “histeria”: uma suposta doença feminina cujos sintomas incluíam irritabilidade, insônia, dores de cabeça e choro. A enfermidade, segundo acreditavam os médicos, teria origem no útero e deveria ser tratada com massagens na vulva que levavam a um tipo de convulsão, batizada de “paroxismo histérico” – e nada mais era que um orgasmo. Os diagnósticos de histeria só iriam sumir nos anos 1950, quando ficou claro que essa história era pseudociência. Lado negativo: os vibradores desapareceram das prateleiras.
Essa falta de oferta já faz parte de um passado distante, claro. Mas, mesmo que hoje as mulheres falem mais abertamente sobre sexo, a falta de informação, aliada a tabus sociais, ainda faz com que boa parte delas tenha dificuldade em alcançar uma vida sexual plena.Segundo um estudo realizado pela Faculdade de Medicina da USP, mais da metade das mulheres brasileiras não consegue atingir o orgasmo em suas relações sexuais. 20% delas nunca se masturbaram – no caso dos homens, a proporção aí é de 2,2%.
Foi se dando conta do quanto desconhecia a própria sexualidade que a empreendedora Marilia Ponte, de 26 anos, resolveu criar a Lilit, uma sextech – sim, é exatamente o você entendeu: uma startup do sexo. Sextechs são empresas que desenvolvem produtos inovadores no segmento erótico: vibradores inteligentes que coletam dados sobre temperatura do corpo e os movimentos dos usuários, lubrificantes feitos à base de produtos naturais, preservativos sustentáveis.
A Lilit é uma empresa jovem. Lançou o seu primeiro produto, o Bullet Lilit, em agosto de 2020. Trata-se de um minivibrador (do tamanho de um batom), recarregável, com cinco opções de vibração e que em nada lembra os objetos fálicos comuns em sex shops. “Meu primeiro vibrador foi uma experiência torta: comprei correndo, como se estivesse fazendo algo errado. A Lilit foi pensada para proporcionar o oposto disso”, diz Marilia.
Reviravolta
Formada em publicidade, Marilia trilhou uma carreira no marketing. Em 2018, depois de quatro anos na Endeavor, uma organização de fomento ao empreendedorismo, a jovem começou a questionar seu propósito. “Tive uma crise existencial. Me vi em um momento que não tinha mais o mesmo tesão pelo que eu fazia. Então, decidi fazer psicanálise para tentar encontrar um novo caminho”, diz.
Foi durante as sessões que Marilia começou a se reconectar com a própria sexualidade que, segundo ela, havia ficado esquecida durante os anos em que se dedicava à carreira corporativa. “Lembro que eu, com uns 7 anos, pegava o dicionário e circulava as palavras relacionadas a sexo, como pênis, vagina, vulva, e fazia legendas. Sempre fui muito curiosa sobre o tema”, conta. “Um dos presentes que ganhei, por conta disso, foi um livro de educação sexual da minha mãe.”
Durante alguns meses, Marilia dividiu sua jornada de trabalho na Endeavor durante o dia com cursos e pesquisas sobre sexualidade à noite. E foi assim que ela percebeu que, mesmo se considerando “uma mulher bem resolvida”, ela mesma tinha pouca informação sobre o próprio corpo. “Fiquei chocada quando descobri que o clitóris, na verdade, tem 8 centímetros. Saí contando para todo mundo.”
Durante as pesquisas, Marilia encontrou o movimento das sextechs, mais maduro nos Estados Unidos.“Lá, 50% das mulheres tiveram um vibrador alguma vez na vida. No Brasil, são apenas 30%”, conta. No final de 2018, ciente de que existia uma oportunidade, a jovem pediu demissão da Endeavor, vendeu o carro, juntou R$ 200 mil em economias e decidiu criar sua própria sextech. A Lilit começava a sair do papel.
Feito por (e para) mulheres
Antes de lançar qualquer coisa, Marilia fez uma pesquisa online para entender a relação das mulheres com o sexo. Quase 4 mil responderam. O resultado: só 30% das participantes atingiam o orgasmo em em relações sexuais. “Os números eram muito parecidos com pesquisas dos Estados Unidos. Percebi que a questão de não ter uma vida sexual plena não era um problema só da minha bolha.”
Depois disso, Marilia passou a organizar encontros para que as mulheres contassem um pouco da sua experiência com brinquedos sexuais. Funcionava igual reunião da Tupperware, uma convidada precisava trazer outras duas amigas. No encontro, elas levavam seus vibradores e tinham a oportunidade de conhecer outros modelos.
A partir dos relatos e observações, a empreendedora começou a desenhar do zero o projeto de um “vibrador perfeito”, com material de primeira linha e diferentes motores, a partir de impressão 3D. Como grande parte dos dildos são importados da China, Marilia também teve de encontrar um parceiro no país asiático para fabricar seu produto.
Após alguns meses, ela chegou à concepção final do Bullet Lilit. O modelo, em forma de bala de revólver, é focado em quem quer iniciar sua incursão no mundo dos brinquedos eróticos. “Sempre fiz uma provocação de como gostaria de ter começado a usar um vibrador, desde a experiência de compra à embalagem, do discurso da marca ao conteúdo educacional envolvidos. A ideia é acompanhar toda a jornada das consumidoras.”
Preconceitos
O nome da startup também não é por acaso. Lilith (com agá) foi, segundo o folclore judaico, a primeira mulher criada por Deus, a partir do pó, assim como Adão. Ela, no entanto, recusou-se a ficar ele durante o sexo por não se considerar inferior ao par – já que ambos haviam sido feitos do mesmo material. Lilith, então, abandonou o Éden e passou a viver como um demônio no Mar Vermelho. Em suma, é um símbolo de autodeterminação sobre a sexualidade.
Marilia, porém, sabia que a determinação não bastava. Estava ciente de que encontraria dificuldades. A começar pelo fato de ser mulher e empreender. “Quando estava na Endeavor, sempre me incomodava com a baixa presença feminina liderando negócios na rede”, diz. Criar uma startup relacionada a sexo, para piorar, adicionou uma camada a mais de preconceito. “Recebi um convite de ex-colegas para jantar, insinuando se eu estava com algum problema na minha vida sexual para criar um negócio desses”, diz.
Não faltam barreiras. Marilia conta que foi banida do Whatsapp Business e não consegue patrocinar anúncios no Instagram devido às regras de conteúdo, que automaticamente associam o trabalho da empresa com pornografia. Alguns fundos de investimentos também possuem restrições quanto a investir em negócios relacionados a sexo, o que dificulta o acesso a dinheiro para financiar a empresa. “Um dos caminhos que encontrei foi explicar o potencial de negócio”, diz.
Mercado quente
E números para isso não faltam. Segundo dados do portal Mercado Erótico, o setor faturou R$ 2 bilhões em 2019. Já a empresa de pesquisas Allied Market Research estimou que o mercado global de produtos para o bem-estar sexual deve atingir US$ 108 bilhões em 2027.
Se por um lado a pandemia acabou com a libido de muita gente, por outro o isolamento também fez disparar a procura por sex toys. Ainda de acordo com o site Mercado Erótico, entre março e maio de 2020, foram vendidos 1 milhão de vibradores, número 50% maior que o registrado no ano anterior.
Não à toa, embora tenha atrasado o lançamento do primeiro produto em alguns meses por conta da pandemia, Marilia logo percebeu que estava no caminho certo. Até agora, a startup vendeu 1.500 unidades do Bullet Lilit.
Nos próximos meses, Marilia também pretende incluir no seu catálogo outros itens, como velas de massagens e cremes lubrificantes. Neste mês, a empreendedora, única funcionária da empresa por enquanto, ingressou no programa da aceleradora B2Mamy, vinculado ao Google For Startups. “É um movimento de abrir caminhos. Mas, logo, muitos outros negócios vão surgir.” Se as previsões se concretizarem, em breve, os vibradores voltarão a prateleiras de lojas comuns – desta vez, por motivos mais nobres.
Escrito por Luciana Lima.
Artigo originalmente publicado na Você S/A em Março de 2020. Leia o original.